02 novembro 2016

O SEMEADOR, AS SEMENTES E A TERRA

José e Maria estavam casados fazia sessenta anos. Não houve festa para comemorarem tamanho tempo de união e cumplicidade, pois os filhos e netos estavam distantes, alguns espalhados pelo mundo, que havia muito tempo que não se comunicavam com os pais. José e Maria não se preocupavam com isso. Religiosos, acreditavam que cumpriram suas missões com os filhos, bem criados, educados, todos formados, bem de vida e que apesar de esquecerem-se dos pais, isso não lhes parecia uma desilusão. José e Maria se conheceram quando tinham quinze anos e logo se apaixonaram. Naquela época era normal se casarem antes dos vinte anos, mas José e Maria esperaram completarem vinte anos e se casaram. Os filhos vieram numa sequência de um ano cada até chegar ao sexto. Quatro homens e duas mulheres. Planejaram o sétimo antes de fechar a fábrica, mas Maria teve um aborto espontâneo e perderam a criança. José e Maria sempre estiveram juntos, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença e o amor nunca se ausentou de suas vidas. José dizia que não suportaria viver sem Maria o confortava que um dia iriam morrer e um iria morrer antes do outro, mas que se encontrariam e viveriam felizes por toda a eternidade. José sempre falava em morte, o que não contentava Maria, que dizia a ele que a morte não existia e sim a vida plena, após encerrarem o ciclo desta vida. Maria dizia a Jose que o que chamavam de morte, na verdade era a vida eterna, onde não existiriam mais as dores e somente o amor imperaria. Todas as noites antes de dormir, José se despedia de Maria com um beijo, como se fosse o último, como se fosse a última vez que daria um beijo em sua eterna amada e dizia que sentia muito medo de fechar os olhos e não abri-los mais, mão ver o sol nascer na manhã seguinte. Se eu morrer antes de você, faça-me um favor: Chore o quanto quiser, mas não brigue com Deus por Ele haver me levado. Se não quiser chorar, não chore. Se não conseguir chorar, não se preocupe. Se tiver vontade de rir, ria. Se alguns amigos contarem algum fato a meu respeito, ouça e acrescente sua versão. Se me elogiarem demais, corrija o exagero. Se me criticarem demais, defenda-me. Se me quiserem fazer um santo, só porque morri, mostre que eu tinha um pouco de santo, mas estava longe de ser o santo que me pintam. Se me quiserem fazer um demônio, mostre que eu talvez tivesse um pouco de demônio, mas que a vida inteira eu tentei ser bom e amigo. Espero estar com Ele o suficiente para continuar sendo útil a você, lá onde estiver. E se tiver vontade de escrever alguma coisa sobre mim, diga apenas uma frase: Foi meu verdadeiro amor, acreditou em mim e me quis mais perto de Deus! Aí, então derrame uma lágrima. Eu não estarei presente para enxugá-la, mas não faz mal. Irei cuidar de minha nova tarefa no céu. Mas, de vez em quando, dê uma espiadinha na direção de Deus. Você não me verá, mas eu ficaria muito feliz vendo você olhar para Ele. E, quando chegar a sua vez de ir para o Pai, aí, sem nenhum véu a separar a gente, vamos viver, em Deus, o amor que aqui nos preparou para Ele. Você acredita nessas coisas? Então ore para que nós vivamos como quem sabe que vai morrer um dia, e que morramos como quem soube viver direito. Amar só faz sentido se traz o céu para mais perto da gente, e se inaugura aqui mesmo o seu começo. Mas, se eu morrer antes de você, acho que não vou estranhar o céu. Ser seu marido... Já é um pedaço dele... Numa noite de inverno, antes de dormir, José estava impaciente. Tomou um chá bem quente, colocou a velha meia furada, mas que ainda esquentava seus pés e se deitou antes de Maria. Durante a noite José não se levantou nenhuma vez, não roncou, não pediu para Maria ir pegar água na cozinha e nem reclamou que a luz do abajur ficara acesa. Maria estranhou tudo aquilo, mas estava cansada e dormiu. Quando despertou estava amanhecendo o dia e como sempre se levantou para preparar o café para seu marido. Maria fazia questão, pois José se animava ao sentir o aroma do café espalhando pela casa. Porém, José continuou quieto e sem se mexer na cama. Estava muito frio, José estava bem enrolado nos cobertores e Maria não quis acordá-lo antes de preparar o café. - Querido! Acorda! O café já está pronto e suas torradas também! Venha meu amor! Levante! Maria cuidava de tudo com muito carinho e amor e ficava muito feliz ao ver o sorriso estampado no rosto do amado marido quando se sentava à mesa todas as manhãs para tomar o café. Mas algo estava errado. José não respondia aos pedidos carinhosos de sua esposa e então Maria resolveu chamá-lo se perto. Sento-se ao lado na cabeceira da cama, acariciou os cabelos brancos do marido e sussurrou em seu ouvido: - Acorda meu amor! José novamente não respondeu e Maria então o acariciando, colocou a mão em sua face e percebeu que José estava gelado. Também, estava muito frio - Pensou Maria. Os lábios de José estavam rachados e o corpo muito enrijecido, quando Maria segurou firme em seu pulso e colocou o ouvido no coração de José: José estava morto. - Meu Deus! Exclamou Maria. - Querido! Fale comigo! O café está à mesa e eu fiz tudo como você gosta! Não me deixe, por favor! Você me prometeu! Não me deixe! Maria ameaçou entrar em desespero, mas respirou fundo e pensou em tudo que passaram juntos durantes sessenta anos de cumplicidade, amor, tristezas e alegrias e resolveu não chorar. É claro que algumas lágrimas escorreram, afinal é difícil aceitar a perda, a ausência e os sintomas da saudade. Quando o resgate chegou para levar o corpo de José para o Instituto Médico Legal, alguns amigos ficaram para consolar Maria. Dos filhos, dois não puderam comparecer ao velório, pois estavam fora país, num local muito distante. Durante o velório Maria procurou não demonstrar tristeza. Dizia aos mais íntimos que a vida com José tinha sido muito mais de alegrias do que tristezas e que o amado marido não gostaria de vê-la triste, emburrada pelos cantos, sofrendo e depressiva. José dizia em vida que caso morresse antes da esposa querida, queria que ela lembrasse apenas das recordações em que foram felizes e que ela podia chorar um pouquinho por sua ausência e saudade... Só um pouquinho. Depois do sepultamento, Maria nem teve o privilégio de ser amparada pelos filhos presentes. Talvez as sementes não fossem bem cultivadas por eles, tornando-os frios, ausentes, que nem mesmo tiveram a iniciativa de amparar a mãe em uma de suas residências. Maria não se desesperou pela falta de carinho dos filhos e tomou uma decisão que abalou aos amigos mais íntimos: - Vou viver num asilo! Ao deixar a casa em que viveu por mais de quarenta anos ao lado do marido falecido, Maria não estava desanimada. Estava contente e animada, pois tinha muitos planos que poria em prática no asilo. Enquanto tudo estava sendo preparado para a mudança, Maria ainda teve o desprazer de ver os filhos brigando pela posse da casa, mas preferiu seguir sua vida, seus desejos e por que não dizer seus sonhos, apesar dos oitenta e sete anos de idade. Maria em sua nova jornada pensou em adubar mais a terra onde as suas sementes seriam lançadas, para não ter que ser perdoada pelo semeador por não cuidar bem da terra. - Às vezes, mesmo tendo as melhores sementes, cuidando para não crescerem entre as pedras e os espinhos, os frutos podem se desvirtuarem se a terra não for bem cuidada ou se infestarem das pragas que estão sempre prontas a querer nos infestar. Quando chegou ao asilo, Maria encontrou um ambiente sombrio. As pessoas passavam a maior parte do tempo deitadas ou sentadas, assistindo televisão. Para quem pensava que Maria fosse se “esconder” dentro do asilo, ser esquecida, ficar sentada o dia inteiro numa poltrona, com a boca escancarada, sem dentes e esperando a morte chegar, muito se enganaram: Maria levou consigo livros, revistas, discos, e distribuiu para todos no asilo. Para os quais não tinham condições de ler, ela mesmo lia, para os deficientes visuais, ela contemplava a natureza, as cores e a vida com suas poesias, suas histórias de vida voltada para a alegria e contentamento. Montou uma equipe de velhinhos que construíram um jardim e plantaram flores e plantas coloridas, montou um grupo de oração. Estava a todo o momento sorrindo, elevando o astral daqueles que estavam deprimidos e quando choravam era por tanta alegria. Depois de dez anos no asilo, Maria morreu. Neste tempo todo deu para contar na palma das duas mãos quantas vezes recebeu a visita de algum dos filhos. Mesmo assim, Maria não morreu triste. Morreu sorrindo como fora seu marido José, morreu dormindo, também como seu marido e o sorriso estampado em seu rosto como ultima fotografia na face da terra, provou que iria casar de novo, reencontrar o seu grande amor José e viverem felizes para toda a eternidade. - Talvez o que chamamos de morte nada mais pode ser do que a nossa melhor vida, a vida eterna!
TRECHO DO LIVRO...

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