A escola estava agitada e preparando uma grande festa em comemoração ao dia dos
pais. Rafael estava animado, pois sua mãe, mesmo presa na penitenciária do
estado, havia prometido que ele ia passar o dia dos pais com seu pai que não
via há muito tempo. Rafael vivia mais na rua do que em casa. Não era um menino
de rua problemático. Estudava na parte da manhã e na parte da tarde ficava num
semáforo pedindo uns trocados que dava tudo para sua avó, quando chegava em
casa ao anoitecer. A festa do dia dos pais sempre foi muito importante para
Rafael. Todos seus amigos da escola estavam sempre com os pais, no campo de
futebol, nas festas juninas, natal, etc. Rafael havia prometido aos amigos que
todos iriam conhecer seu pai, além da saudade, da necessidade que tinha de
estar com ele, principalmente naquela data. A mãe de Rafael estava presa por
tráfico de drogas. E não foi só uma vez, ela foi reincidente várias vezes. O
pai, coitado, vivia como um zumbi na cracolândia. A mãe prometeu o pai a Rafael
num momento de loucura, por não ter mais o que dizer para o filho. Vendo aquela
situação, sua avó resolveu contar toda verdade para Rafael antes da festa do
dia dos pais na escola, para que Rafael não fosse humilhado novamente pela
falta do pai. - Vó onde fica essa cracolândia? Sua
avó ficou com o coração partido e apenas respondeu que ficava muito longe.
Naquela tarde Rafael foi novamente ao semáforo pedir esmola. A todos que
conseguia conversar perguntava onde ficava a cracolândia até que um motorista
de ônibus explicou depois que Rafael disse-lhe que teria que buscar o pai para
leva-lo na festa da escola. Além de motorista de ônibus, aquele homem fazia
parte de uma ONG chamada Anjos da Madrugada e que prestava assistência à
famílias que tinha algum membro envolvido com as drogas. No dia seguinte,
véspera da festa da escola, Rafael apareceu no semáforo a espera do motorista
que havia prometido que o levaria até a cracolândia para buscar seu pai. Rafael
apareceu no horário marcado, junto com sua avó, e todos foram para a
cracolândia buscar o pai do menino. Rafael, garoto de sete anos de idade, sabia
que o mundo das drogas era cruel, mas não tinha a mínima noção de como era a
cracolândia. O motorista e sua avó se arrependeram de levar o menino. - Bem vindo à cracolândia. Bem vindo ao
inferno de zumbis. De
certo não poderiam deixar Rafael ver aquelas pessoas vagando, possuídas por
todos os demônios das drogas, vivendo como zumbis moribundos. Deixaram
Rafael na perua da ONG Anjos da Madrugada, junto com uma assistente social e
ficaram horas procurando seu pai. Pelos
dados catalogados que várias ONGs possuem, descobriram que o pai de Rafael
estaria internado numa clínica de recuperação perto dali. Após mais alguns
horas de procura, descobriram, infelizmente para Rafael, que seu pai havia
morrido fazia dez dias, vítima de over dose de um coquetel de drogas e foi
enterrado como indigente, apesar de ter documentos. Foi
difícil explicar ao garoto todo aquele enredo e de colocar em si o símbolo das
drogas no lugar do símbolo do pai. Rafael e sua avó voltaram para casa depois
daquele dia desgastante e de realidade triste. No dia seguinte Rafael voltou às
ruas para pedir esmolas. Não foi à escola, não foi à festa do dia dos pais. Não
tinha pai. - Tio me dá um trocado? Nos
vários carros que Rafael abordava via famílias alegres, pais, filhos, e ele não
tinha essa alegria. O pai morto pelas drogas e a mãe presa, também pelas
drogas. - A vida é mesmo uma droga. Com
os trocados que Rafael trouxe para casa naquele dia, sua avó pode comprar o
alimento do dia. Comeu, pediu bênção a avó e foi dormir. - Vó não vou ser como minha mãe e meu pai.
Eu quero ser alguém na vida. Segunda feira, mesmo sem pai, mesmo sem mãe,
voltarei para a escola. Rafael se deitou, mas não conseguiu pegar no sono. A imagem do pai não
lhe saia do pensamento. Imaginava também a festa da escola, com todos seus
amigos se divertindo e distribuindo os presentes aos pais. Entre virar-se para
um lado e outro se viu viajando entre nuvens e uma grande escada iluminada com
luzes amarelas. Rafael resolveu subir. A
cada degrau que subia sentia-se mais leve e uma energia tomava conta de seu
corpo. Ao chegar no alto, encontrou uma enorme porta entreaberta. Ouvia-se uma
música suave e alguns meninos e meninas com cabelos de algodão tocando
instrumentos musicais. Ficou com muito medo de entrar, não havia ninguém na
porta "fiscalizando", mas não queria ser chamado de penetra igual a
tantas vezes que teve que fazer isso para pedir um prato de comida. - Você não pode entrar ainda. Uma voz lhe disse que não podia entrar, mas
Rafael não conseguiu identificar quem o questionava. Olhou novamente pela porta
entreaberta e constatou que estava tendo uma festa e que os meninos e meninas
estavam de mão dadas com seus pais. Os
presentes eram abraços, beijos, carinho... Amor. Rafael pensou: -
Como poderei entrar nesta festa? Eu não tenho pai! E novamente Rafael
ouviu a mesma voz dizendo que ele teria que descer as escadas novamente e
entrar pela porta de baixo. Rafael assim o fez.
Ele demorou pouco tempo para subir, mas estava demorando muito tempo
para descer e se sentiu muito cansado no trajeto. Quando chegou embaixo, tentou
abrir a porta, mas era muito pesada, não conseguia. Não havia ninguém para
ajuda-lo e então resolveu fazer uma oração que havia aprendido nas poucas aulas
de catecismo que havia frequentado. Assim que terminou a oração, Rafael, ainda
ajoelhado, viu a porta, sozinha, se entreabrir o suficiente para poder entrar.
Ao entrar ouviu muito choro, pessoas adultas, arrependidas, outras rebeldes,
inquietas... Foi andando por um grande corredor, muito
escuro, quente, enfumaçado, tropeçando nos pés de pessoas desesperadas, homens
que ficavam deitados como se estivessem implorando misericórdia, como se
estivessem pedindo perdão. Na
lateral do corredor existiam lanternas. Rafael pegou uma lanterna e continuou
caminhando até que encontrou um homem que parecia estar dormindo. Retirou uma
foto do bolso detrás da bermuda e confirmou sua suspeita:- Era seu pai. Rafael pegou um bilhete que estava na mão
direita de seu pai e que dizia:
- Ainda que eu ande pelo vale da sombra da
morte, não temerei mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado
me consolam.
Então Rafael abraçou e beijou seu pai. Ouviu dele várias vezes a palavra
perdão expressada na forma de beijos e abraços, de amor. Imediatamente uma luz
se acendeu em meio à escuridão. O pai de Rafael se levantou, e abraçados saíram
daquele lugar tenebroso. A porta automaticamente se abriu e se acharam na
grande escada. A mesma voz autorizou-os a subir, dizendo que a porta se abria
no instante em que o amor se manifestasse naquele lugar de terror. E ao
chegarem lá em cima, bem lá em cima, a porta já estava aberta. Os
meninos e meninas de cabelos de algodão receberam Rafael e seu pai e ambos
entraram na festa onde os pais e filhos se adoravam e se amavam, se divertiam
na festa comandada por um Senhor de barbas brancas emocionado, com lágrimas nos
olhos e abraçado com Rafael e seu pai. Em
meio a emoções, o velho Senhor de barbas brancas disse a Rafael que tudo estava
resolvido, a festa iria acabar, mas existiria tempo para outras tantas festas e
que naquele momento ele teria que retornar à sua casa, aos seus estudos, e num
futuro, depois de passar por alegrias e tristezas, retornaria aquele lugar e
ficaria junto ao seu pai e a tantas pessoas que ama e ainda amará, de quem
conhece e ainda irá conhecer, para que as festas sejam ainda mais animadas e o
sentimento de amor seja eterno: - Acorda Rafael! Não vá perder a hora de ir para a escola. - Já vou vó! Já vou.
Antonio Auggusto João